Governo de Israel acusa PCC de usar banco digital e criptomoedas para financiar terrorismo

Comunicado do governo de Israel alerta para financiamento do PCC a células terroristas. (Foto: Marcelo Casal Jr./Agência Brasil)

Os documentos indicariam que o PCC teria remetido cerca de US$ 82 milhões – aproximadamente R$ 450 milhões – para contas que financiam ou possuem ligação com o terrorismo em quase dois anos


O Ministério da Defesa de Israel emitiu um comunicado ao governo brasileiro, enviado ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), ao Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) e à Polícia Federal, em que alerta sobre a utilização de carteiras digitais com criptomoedas vinculadas a uma fintech (banco digital) do Brasil que seria ligada ao Primeiro Comando da Capital (PCC). As movimentações seriam destinadas ao suposto financiamento de atividades terroristas.

A classificação dessas atividades foi feita com base nos critérios da legislação israelense para terrorismo, mas não menciona quais seriam as organizações envolvidas com o PCC.

O banco digital teria movimentado, segundo o documento que culminou em relatório do Coaf às autoridades de fiscalização e controle, quase meio bilhão de reais em um rastreamento que veio à tona em fevereiro deste ano, mas que vinha sendo monitorado desde meados de 2023.

Segundo o MP e a Polícia Federal, o banco digital pertence ao PCC e tem como CEO e proprietário um policial civil do estado de São Paulo. Ele foi preso pela segunda vez em menos de um ano, desta vez em uma operação no fim de fevereiro. A empresa online foi criada em 2020. Nem o banco digital nem a defesa do policial civil responderam ao pedido de entrevista feito pela Gazeta do Povo.

O documento do governo israelense alerta que as verbas "seriam operacionalizadas para movimentação de criptomoedas com fins de perpetração de crimes de terrorismo".

O banco digital já vem sob investigação no Brasil por suspeitas de lavagem de dinheiro associada ao PCC e de ter movimentado cerca de R$ 6 bilhões para o crime organizado, em operações envolvendo instituições de crédito em pelo menos 15 países.

Os documentos indicariam que o PCC teria remetido cerca de US$ 82 milhões – aproximadamente R$ 450 milhões – para contas que financiam ou possuem ligação com o terrorismo em quase dois anos. A lista de alerta do Ministério da Defesa de Israel indica transações em pelo menos 15 carteiras digitais em 40 núcleos de investimentos mantidos por uma das maiores e principais corretoras de criptomoedas do mundo.

Tanto o MP-SP quanto a Polícia Federal – que investigam ao menos duas fintechs usadas pelo PCC para a lavagem de dinheiro, incluindo laranjas beneficiários de programas assistenciais, como o Bolsa Família – avaliam que esses bancos e a organização criminosa criaram uma "engenharia financeira complexa" para despistar o rastreamento das movimentações criminosas por órgãos de fiscalização e controle do Brasil.

Os policiais brasileiros acreditam que o objetivo do PCC com as movimentações financeiras é comprar armas, drogas e também imóveis e bens de luxo. O uso da criptomoeda era para não chamar a atenção da polícia no Brasil.

As autoridades brasileiras identificaram que a fintech facilita a ocultação de capitais e a transferência de valores para o exterior, dificultando a fiscalização por órgãos de controle, como o Banco Central e a Receita Federal.

A conexão entre o banco digital e o financiamento do terrorismo foi descoberta após um banco que opera de forma legal, que prestava serviços financeiros para a fintech, identificar transações entre operadores com carteiras digitais suspeitas. Essas transações sugerem uma relação entre os ativos virtuais adquiridos por clientes no exterior e recursos enviados por meio de operações de câmbio listadas pelo Ministério da Defesa de Israel.

A Gazeta do Povo também tentou contato com o banco que fez o rastreamento e o alerta ao governo israelense, mas não houve manifestação até a publicação da reportagem. O espaço segue aberto.

Há pelo menos duas décadas, a PF e outros organismos internacionais alertam para uma conexão financeira entre o PCC, máfias e cartéis pelo mundo, além de grupos terroristas, como o Hezbollah, os quais têm presença na região de tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina.

O nome da organização terrorista, no entanto, não consta no documento enviado por Israel, que não relacionou quais seriam os núcleos de terrorismo financiados e abastecidos com dinheiro do PCC.

Essas revelações levaram as autoridades brasileiras a aprofundar as investigações sobre as operações financeiras da facção e suas possíveis conexões com organizações terroristas pelo mundo.

Durante uma coletiva de imprensa no fim de fevereiro, logo após deflagrar mais uma operação contra a lavagem de dinheiro por meio de fintechs do Primeiro Comando da Capital, o promotor Lincoln Gakiya, do MP-SP, mencionou que as operações em bancos digitais e a correlação com o terrorismo, passando por cerca de dez países, estão sob intensa investigação e que novas operações devem mirar o esquema criminoso.

Instituição identificou movimentações suspeitas de banco digital e comunicou governo de Israel

O banco que formalizou as denúncias ao governo israelense – o que resultou no comunicado às autoridades brasileiras – identificou transações de criptoativos realizadas entre as carteiras digitais de seus clientes que foram elencadas no documento. A instituição alertou que "havia uma relação entre os ativos virtuais adquiridos pelos clientes no exterior com recursos enviados por meio de operações de câmbio com wallets listados".

Para o MP, isso revela "como a empresa [banco digital] proporciona condições apropriadas para a movimentação dos recursos das mais variadas origens ilícitas".

As operações da fintech brasileira – que tem o policial civil do estado de São Paulo entre seus sócios – já haviam sido citadas pelo delator do PCC, Vinicius Gritzbach, assassinado em novembro do ano passado no aeroporto internacional de Guarulhos. O policial foi afastado de suas funções é investigado pela Corregedoria.

Investigações da Polícia Federal brasileira, em parceria com outros organismos internacionais, indicam para relações e negócios entre a facção brasileira e quase uma dezena de núcleos mafiosos, que vão desde terrorismo, passando por cartéis e máfias espalhados pelo planeta.

A relação se dá, basicamente, para a compra, venda e transporte da cocaína da América do Sul para todos os demais continentes, aquisição de armas pela facção brasileira, treinamentos de guerrilha para faccionados, além de proteção dado por membros do PCC a possíveis integrantes de núcleos criminosos internacionais em presídios brasileiros.

As investigações conduzidas pela Polícia Federal ocorrem em parceria com a Interpol, DEA, Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), Europol e outros organismos internacionais. Elas apontam para possíveis negócios que vêm sendo firmados ao longo das últimas décadas com:

  • 'Ndrangheta: Máfia italiana baseada na Calábria, conhecida por seu envolvimento com o tráfico internacional de drogas. Relatórios internacionais da ONU indicam que o PCC mantém relações com a 'Ndrangheta, facilitando operações de narcotráfico entre a América do Sul e a Europa.

  • Máfias dos Bálcãs: Organizações criminosas atuantes na região dos Bálcãs, na Europa, envolvidas com o tráfico de drogas e outras atividades ilícitas. O PCC teria estabelecido parcerias com essas máfias para expandir suas operações naquele continente.

  • Máfias Africanas: Grupos criminosos que atuam em países africanos e colaboram com o PCC no tráfico de drogas e outras atividades ilegais, facilitando rotas de narcotráfico para a Europa e Ásia.

  • Hezbollah: Grupo militante xiita libanês. Investigações da Polícia Federal apontam que o Hezbollah teria iniciado parcerias com o PCC a partir dos anos 2000, envolvendo-se em atividades como contrabando de cigarros e tráfico de drogas na região da Tríplice Fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai).

  • Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc): Grupo guerrilheiro colombiano envolvido com o tráfico de drogas. O PCC teria estabelecido conexões com as Farc para facilitar o tráfico de cocaína na América do Sul.

  • Cartel de Sinaloa: Uma das maiores organizações de tráfico de drogas do México. Há indícios de que o PCC mantém relações comerciais com o Cartel de Sinaloa para a distribuição de drogas.

  • Cartel Jalisco Nueva Generación (CJNG): Outro poderoso cartel mexicano com o qual o PCC teria estabelecido conexões para expandir suas operações de narcotráfico.

  • Cartel del Golfo: Organização criminosa mexicana envolvida com o tráfico de drogas e outras atividades ilícitas. O PCC teria interações com esse cartel para facilitar suas operações.

  • La Familia Michoacana: Cartel mexicano conhecido por suas operações violentas e controle territorial. O PCC possivelmente mantém relações com esse grupo para expandir suas rotas de tráfico.

  • Cárteles Unidos: Aliança de diversos cartéis mexicanos. O PCC estaria colaborando com esse grupo para fortalecer suas operações internacionais ao tráfico de drogas.


"Essas alianças estratégicas permitem ao PCC ampliar sua influência e operações no tráfico internacional de drogas, armas e outras atividades ilícitas, consolidando-se como uma das organizações criminosas mais poderosas da América Latina", alerta o cientista político Marcelo Almeida, especialista em segurança pública.

Estado precisa mostrar que é mais organizado que o crime, alerta procurador

Em uma entrevista coletiva concedida após a operação Hydra no fim do mês passado, que mirou a atuação dos bancos digitais a serviço do PCC, o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, disse que o esquema envolvendo os bancos digitais mostra a forma como organizações criminosas têm se beneficiado de "vácuos de fiscalização do próprio poder público" para lavar dinheiro em ações típicas ao crime organizado e usou como exemplo o que fazem as máfias pelo mundo. Ele disse ainda que o "Estado precisa mostrar que é mais organizado que o crime organizado".

O promotor Lincoln Gakiya afirmou, durante a mesma entrevista, que 58% das fintechs da América Latina, o que corresponde a cerca de 1,5 mil delas, estão no Brasil. Ele avaliou que uma pequena parcela está a serviço do crime organizado, mas que elas operam em movimentações bilionárias, dando um ar de legalidade a dinheiro sujo. Elas usam brechas nos regramentos para atuar. Entre os atrativos oferecidos aos "clientes", está a garantia de anonimato em seus serviços.

Segundo o promotor, se não fosse uma operação no fim do mês passado, que resultou da colaboração do delator morto Vinicius Gritzbach, não seria possível chegar aos nomes de quem estava fazendo as transações comerciais nos bancos digitais do PCC.

"Trata-se de uma série de operações casadas, envolvendo não apenas as fintechs suspeitas, mas outras instituições financeiras e quando [as transações] passam por países como a China, por exemplo, a gente perde toda a rastreabilidade", alerta Lincoln Gakiya.

Segundo o promotor, o que se tem visto espanta operadores do direito e investigadores, o que chamou de "outro patamar do crime organizado" com sofisticação de engenharia financeira na lavagem de dinheiro. Segundo ele, as irregularidades começaram com o serviço de doleiros nos anos de 1990, passaram por etapas nas quais os criminosos enterravam dinheiro em casas-cofre e então se chegou ao que se vê no momento.

"Hoje, utilizando brechas legais e muito bem assessorados, esses criminosos estão operando no mercado financeiro formal. Melhor que você ter laranjas para montar uma empresa de fachada, é você ter o seu próprio banco. Infelizmente é isso que a gente está assistindo", afirmou Gakiya.

Para o promotor, é essencial revelar à sociedade e aos poderes que há brechas e um caminho explorados e que são facilitadores para que o crime organizado use as fintechs, ou os chamados bancos digitais, para lavagem de dinheiro.

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