Equipe analisou dados bioarqueológicos sobre a idade da morte e lesões esqueléticas de 369 pessoas mortas antes e durante a onda de casos da doença nos Estados Unidos
A gripe espanhola atingiu o mundo violentamente em 1918, gerando uma pandemia que matou cerca de 50 milhões de pessoas. Agora, um novo estudo derruba um mito sobre essa crise de saúde que há muito foi registrado em livros de história: a ideia de que a doença atingia os mais jovens e fortes tão frequentemente quanto afetava aqueles mais vulneráveis.
Tantas pessoas adoeceram na época que os médicos acreditavam que as pessoas saudáveis tinham a mesma probabilidade de morrer que as que já estavam doentes ou frágeis. Mas a pesquisa publicada em 9 de outubro no periódico PNAS mostra que isso pode não ser verdade.
Os pesquisadores da Universidade do Colorado Boulder (CU Boulder), nos Estados Unidos, e da Universidade McMaster, no Canadá, analisaram dados bioarqueológicos sobre a idade da morte e lesões esqueléticas de 369 pessoas mortas antes e durante a pandemia de gripe de 1918 nos EUA.
Os resultados mostraram que, no passado, os indivíduos que haviam sido expostos a estressores ambientais, sociais e nutricionais previamente tinham maior probabilidade de sucumbir ao vírus da gripe espanhola. Isso também aconteceu na pandemia atual de Covid-19 e em outras crises de saúde ao longo da história.
"Essa ideia de que a gripe de 1918 matou pessoas jovens e saudáveis não é apoiada por nossas descobertas", afirma Sharon DeWitte, coautora da pesquisa e professora de antropologia na CU Boulder, em comunicado. "Em vez disso, descobrimos que essa pandemia, como muitas outras ao longo da história, matou desproporcionalmente pessoas frágeis."
Retrato tirado durante a gripe espanhola de 1918 | Foto: Universidade do Colorado em Boulder |
Segundo DeWitte, as ideias de que a gripe espanhola levou muitas pessoas saudáveis à morte podem ter começado como sabedoria popular, tendo sido reproduzidas na literatura repetidamente até figurarem uma falsa verdade.
Ela observa que embora documentos históricos sejam úteis, eles tendem a enfatizar o destino dos privilegiados, deixando de fora as perspectivas de mulheres, crianças e os marginalizados. "O que as evidências esqueléticas podem fazer é nos fornecer informações sobre pessoas que não necessariamente estão representadas nesses documentos históricos", afirma a pesquisadora.
Para o novo estudo, DeWitte e a coautora Amanda Wissler, professora assistente de antropologia na Universidade McMaster, consultaram a Coleção Osteológica Humana Hamann-Todd. Este acervo, que fica no subsolo do Museu de História Natural de Cleveland, nos Estados Unidos, inclui mais de 3 mil esqueletos humanos centenários.
Durante a pandemia de Covid-19, Wissler passou horas examinando os ossos humanos no acervo. Para ela, era importante lembrar que as vítimas da gripe espanhola eram pessoas reais: por isso, a pesquisadora buscou os nomes, idades e datas de morte dos indivíduos que analisou. "Esse pode ser um trabalho intenso", ela comenta.
Com uma lupa, Wissler olhou para as tíbias dos mortos em busca de lesões porosas, que indicam trauma, infecção, estresse ou desnutrição. Assim, o estudo revelou que os mais frágeis tinham 2,7 vezes mais chances de ter morrido durante a epidemia de gripe no século passado.
As pesquisadoras suspeitam que, assim como ocorreu na pandemia da Covid-19 e na crise da peste bubônica, que ocorreu na Eurásia Ocidental entre 1346 e 1356, o status socioeconômico, a educação, o acesso à saúde e o racismo institucional podem ter desempenhado um papel importante na vulnerabilidade de alguns grupos durante o alastramento da gripe espanhola. No entanto, são necessárias mais pesquisas sobre esse ponto.
Os achados lançam luz sobre como as comunidades modernas podem se preparar melhor para pandemias e revelam possíveis lacunas que cientistas enfrentam ao depender exclusivamente de textos escritos para entender o passado.
Além disso, o trabalho alerta para o perigo de mensagens de saúde pública que sugerem que todos têm igual probabilidade de contrair determinada doença. "O que aprendemos é que, em futuras pandemias, quase certamente haverá variação entre os indivíduos no risco de morte", afirma DeWitte. "Se soubermos quais fatores elevam esse risco, podemos direcionar recursos para reduzi-los – e isso é melhor para a população em geral."
*Com informações da revista Galileu
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